05/10/2020

DIVULGAÇÃO CULTURAL #192 - Conclusão, de Luis Fernando Verissimo

 Olá alegres e felzies!



Contém um conto 2020 - Terceira temporada
Nesta edição da nossa newsletter Contém um conto, trazemos uma história de Luis Fernando Verissimo presente na coletânea Verissimo Antológico: Meio século de crônicas, ou coisa parecida, lançada esse ano pela Objetiva.

Luis Fernando Verissimo nasceu em 1936, em Porto Alegre. É autor de best-sellers como O melhor das comédias da vida privada e criador de tipos marcantes como Ed MortO Analista de Bagé e As Cobras. Tem livros publicados em quinze países. Escreveu para inúmeros jornais e revistas, e suas crônicas formaram — e continuam formando — gerações de brasileiros.


Boa leitura! #contémumconto
Conclusão
Luis Fernando Verissimo
⠀⠀⠀⠀⠀Um estranho encontro: você e o seu próprio sangue. Não seu sangue pingando de um corte no dedo ou seu sangue dentro de uma seringa. Seu sangue espalhando-se no chão na frente do seu nariz.
⠀⠀⠀⠀⠀Vermelho escuro é de artéria e claro é de veia. Ou será o contrário? O corte foi no peito mas não deve ter atingido o coração. Você ainda respira. Você ainda está lúcido. Sente o cheiro doce do sangue que avança lentamente e já está a poucos centímetros do seu nariz. A mancha de sangue já está maior do que a sua cara no parquê.
⠀⠀⠀⠀⠀Onde está o homem que apunhalou você? Não está na sala, deve ter entrado no quarto. O que é que ele quer? Uma calcinha. Falou alguma coisa de uma calcinha. Você abriu a porta e ele entrou. Você não teve tempo de dizer nada. Ele perguntou onde estava a calcinha e golpeou você no peito com a faca antes que você pudesse falar. Você não sentiu nada. Quando viu estava no chão, com a cara no chão. Continua não sentindo nada. Só fascinação pelo sangue em movimento diante do seu nariz.
⠀⠀⠀⠀⠀Seu sangue. É a primeira vez que você o vê assim, no atacado. Antes só tinha visto em porções. Mesmo aquele corte feio no dedo não sangrava muito. As gengivas, às vezes, sangravam um pouco. Você cuspia o sangue na pia misturado com a espuma da pasta de dente. Morango com chantili. No laboratório para fazer exame de sangue você virava a cara quando a agulha perfurava a veia mas depois olhava, curioso, quando passavam seu sangue da seringa para o vial. Pequenas quantidades, pouco para uma reflexão, menos ainda para uma filosofia. Agora ele estava ali, formando outro você diante do seu nariz, exigindo uma conclusão.
⠀⠀⠀⠀⠀Seu sangue coisa nenhuma. Ninguém é dono do próprio sangue, só é seu depositário. O sangue pertence àquela parte de você que não tem seu nome, sobre a qual você não tem domínio. Ninguém tem. Por baixo da pele ninguém é de si mesmo. É de outra ordem cuja maquinação nunca adivinha. Uma sociedade obscura, uma irmandade secreta que sua mente não penetra e cujos códigos não decifra. O sangue do corte no dedo e da gengiva, o sangue no vial, são só vislumbres dessa outra existência dentro da sua, desse mundo que você tem por dentro e só conhece de radiografia. Ou seja, de más reproduções em preto e branco. Vagas silhuetas. Riscos num gráfico, vultos num visor. Mensagens clandestinas de espiões incompetentes. Não revelam nada do inimigo, salvo que ele continua lá. Você está ficando tonto.
⠀⠀⠀⠀⠀O sangue se avoluma. O sangue não para, o sangue não quer parar. Só o que impede o sangue de fugir de você ao menor pretexto é a coagulação. A coagulação é a consciência profissional do sangue, o que o faz permanecer no emprego. Sem ela o sangue nos abandonaria pelo primeiro arranhão no joelho e fugiria da nossa mortalidade. Ele não quer morrer aprisionado dentro de você, virar pó junto com você. Dá-se o nome de vida a esta aflição do sangue, ao seu inconformismo de morrer junto com alguém que nem conhece. O sangue é bonito quando jorra porque essa é a cor da sua ilusão de liberdade. Quando você morre com um corte no peito e nem a coagulação segura o sangue, ele jorra espalhafatosamente e se espraia, convencido de que se livrou da nossa ridícula impermanência e que fluirá para o mar como um rio. Mas não vai muito longe. Coagula em torno de você, fica preto. Ele é a sua mortalidade repetida, sua segunda morte. A única eternidade do sangue é a mancha no parquê. Bem feito.
⠀⠀⠀⠀⠀Você está ficando tonto. Quanto tempo até você se esvair em sangue? “Se esvair”... que será “esvair”? O oposto de “jorrar”. Esvair é jorrar filosoficamente. (O homem voltou para a sala. Você ouve suas passadas. Ele está perto de você. Está debruçado sobre você. Está chamando você de filho da puta. Está perguntando pela calcinha.) Você não consegue ver, mas o sangue em que você se esvai deve estar desenhando o seu duplo ao lado do seu corpo. Como aqueles borrões de tinta nos testes psicológicos em que você sempre identificava uma caveira ou a frente de um Studebaker. O sangue vai coagular ao seu lado assim, como o seu gêmeo morto. Gêmeo não. Um desconhecido. A sua reprodução em vermelho. Você reduzido a um contorno. Que diabo de calcinha será essa? Você está curiosamente calmo. Talvez você já tenha morrido e sua mente só esteja olhando em volta antes de partir também, como alguém dando uma última checada no quarto de hotel onde passou alguns dias para ver se não esqueceu nada. A vida é uma breve parada, entre o nada e o nada, num quarto de hotel de um lugar desconhecido, que você tem que deixar quando recém está se acostumando com o padrão das paredes. Jorrar é gozar. Esvair é morrer com tempo suficiente para alguma conclusão e um pouco de literatura. Mas você precisa dela. Se não de uma explicação final, de uma certa simetria. Para que tudo não seja ridículo. Sua história se define. Pronto, você é uma vítima. É assim que a imprensa chamará você, amanhã. Vítima encontrada ao lado da sua réplica em sangue. Apartamento revirado. Assassino procurava alguma coisa.
⠀⠀⠀⠀⠀Você não vê, mas sente a lâmina da faca no lado do seu rosto. Ele é o Executor na sua história, e ele está chorando. Está acusando você de ter desfeito um lar, está ameaçando cortá-lo de novo. Você não sabe o que fez. Quer dizer ao Executor que ele está enganado, mas não tem forças. Que lar? Que calcinha? É um engano. Você vai morrer de um engano. Vítima tinha um sorriso irônico nos lábios e...
⠀⠀⠀⠀⠀Você ouve um som indefinido. Um “Ug”, como o de alguém atingido na barriga por uma bolada. Em seguida, o Executor cai ao seu lado, com a faca cravada no peito. O sangue, o filha da puta do sangue, começa a correr com alegria do buraco do peito dele. O sangue dele se mistura com o seu. Desta vez sim, haverá no mínimo um riacho. Mas não chegará perto do mar. Tudo que vive coagula ou se esfarela.
⠀⠀⠀⠀⠀O Executor está falando. Está dizendo que espera que você sinta remorso pelo que fez. Você quer dizer que aquela tragédia está sendo desperdiçada, que não sabe de nenhuma calcinha. Mas não tem forças. O Executor virou o rosto e está olhando para você. Você tenta sorrir. Não sabe se conseguiu. Morrerá sem saber se conseguiu. Ele diz:
⠀⠀⠀⠀⠀— Este é o 6, não é?
⠀⠀⠀⠀⠀E então você se lembra que o prego de cima do 9 na porta do seu apartamento caiu e o 9 virou 6. Mas você não dará essa felicidade ao sangue. Não confessará que a sua espécie é dada a estes ridículos, movida pelo ciúme, vítima de impulsos e do fortuito, e de noves que viram seis. Afinal, vocês são duas pessoas, dois cidadãos com sentimentos respeitáveis. Não são duas mulas carregando sangue como quem carrega drogas no estômago, sem saber para quem. Vítima e Executor terão a majestade possível quando forem encontrados em meio a esse lago coagulado. O sangue não sairá vitorioso.
⠀⠀⠀⠀⠀Com os últimos movimentos da sua cabeça você diz que sim, fique tranquilo, você não se enganou de porta, este é o 6, sim. E os dois esvaem-se.
Verissimo Antológico: Meio século de crônicas, ou coisa parecida
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cheirinhos

Rudy






2 comentários:

  1. OLá Rudy!
    Adorei o Conto, fiquei completamente envolvida no conto! Adoro Luis Fernando Verissimo e já quero o livro!

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  2. Olá Rudy!
    Curto muito as histórias de Luis Fernando Verissimo, ótimo conto, super envolvente
    Bjs

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Obrigada!!
cheirinhos
Rudy