24/08/2020

DIVULGAÇÃO CULTURAL #156 - Fel, de Javier Contreras

Olá alegres e felizes!



Contém um conto 2020 - Terceira temporada
Nesta edição da nossa newsletter Contém um conto, trazemos uma história de Javier Contreras, publicada originalmente no Estadão.

Javier Arancibia Contreras nasceu em 1976 e foi repórter policial. Escreveu um livro-reportagem e três romances. Foi finalista dos principais prêmios literários brasileiros, como o São Paulo de Literatura e o Jabuti. Em 2012 foi escolhido pela revista literária inglesa Granta como um dos vinte melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos. Publicou pela Companhia das Letras os romances Soy loco por ti, América e  Crocodilo, vencedor do Prêmio APCA.

Boa leitura! #contémumconto
Fel
Javier Contreras
⠀⠀⠀⠀⠀Roberto sente um desassossego irracional, uma amargura que nasce no estômago e sobe pela garganta até a boca. Nesses últimos dias, uma náusea intermitente o controla e volta e meia ele tem a impressão de que vai expelir algo. Preocupado, aciona seu médico particular para uma visita e os exames de praxe.
⠀⠀⠀⠀⠀“Ansiedade, Dr. Roberto. Este momento do mundo faz muitas pessoas se sentirem assim. É a quebra do paradigma da rotina...”
⠀⠀⠀⠀⠀O médico só tem saído de casa para atender pacientes como Roberto. Como o diagnóstico da maioria deles quase sempre é previsível, traz na maleta um ansiolítico poderoso e recomenda que circule pela ampla casa e pelo quintal, que faça exercícios físicos e execute tarefas cotidianas. A verdade, porém, é que Roberto já vem fazendo tudo isso por conta própria e nada adianta. Com o médico já de saída no portão externo, resolve arriscar:
⠀⠀⠀⠀⠀“Acha possível ao menos uma volta com o cachorro pelo bairro?”
⠀⠀⠀⠀⠀O médico olha ao redor do casarão, um palacete da primeira metade do século XX todo reformado e ladeado por um belo jardim, por uma piscina em curva e uma estufa de vidro repleta de orquídeas. Ele balança a cabeça, bufa, diz a Roberto que ele tem restrições de saúde e de idade, que as ruas estão sendo monitoradas, que ele é um privilegiado. Roberto meneia a cabeça positivamente. Entretanto, está na casa há dois meses e não aguenta mais. Os empregados já não vão. É obrigado a pedir comida todos os dias. Tudo está uma bagunça. Há excremento de cachorro por todo o lado.
⠀⠀⠀⠀⠀Vive apenas com sua mulher, Ana Estela, mas a casa é tão grande que às vezes ficam o dia inteiro sem se ver. Ao contrário dela, que tem a habilidade de não ver as horas passarem com seu smartphone, Roberto é um homem à moda antiga, não gosta de tecnologias. Tem prazer em tratar dos assuntos ligados à sua holding sentado em uma sala de reuniões. De terno e gravata. Olho no olho. Com uma caneta na mão a decidir o futuro. Como se fazia antigamente. Talvez o fato de ter fechado algumas unidades de sua rede o tenha deixado exasperado daquele jeito. Para a ruína basta um pequeno passo, pensa.
⠀⠀⠀⠀⠀Vai até a enorme casa de Hans. Ele não gosta daquele cachorro e acha que o sentimento é recíproco. Na verdade, o poodle gigante e branco de Ana Estela o deixa constrangido. Nunca saiu para passear com ele na rua, mas precisa de uma justificativa caso seja flagrado. Apanha a coleira e Hans solta um grunhido grave e interno, mas cede. Roberto decide ir sem a máscara. Pensa que seria incoerente querer um pouco de liberdade usando aquilo. Abre o portão lateral e dá alguns passos. Respira fundo. Tenta rememorar o cheiro peculiar de dama-da-noite, mas só o que sente é o fedor do lixo acumulado nas ruas. Viu na tevê que os lixeiros estão em greve após a morte de dezenas deles. Circula um pouco. Faz tempo que não anda por ali. Usa o carro para tudo e, a pé, a perspectiva é outra. Parece um estranho na sua própria rua. Hans puxa a coleira com uma força descomunal em direção à grande praça do bairro. Roberto fica nervoso, o cão está atrapalhando seu passeio noturno. Dá-lhe um safanão e um chute leve nas costelas, mas não adianta. Só consegue ganhar ainda mais a antipatia do animal, que rosna para ele. É incrível como as praças e os parquinhos sempre são assombrados por vagabundos, pessoas improdutivas incapazes de gerar qualquer tipo de retorno à sociedade e loucos, Roberto pensa assim que se aproxima do lugar. Não lembra daquela praça estar assim, ao deus dará. Seus filhos brincaram ali. Tudo deve ter piorado após a quarentena compulsória se arrastar por meses. Até a segurança do bairro pareceu diminuir.
⠀⠀⠀⠀⠀Ao olhar de longe aqueles homens, sente medo. Se arrepende de ter contrariado o médico. De não ter usado a máscara. A rua é só silêncio quando ouve a melodia repetitiva e pegajosa de um assovio. Quer dar o fora dali o quanto antes, mas nesse instante Hans consegue escapar de suas mãos e corre como o diabo. Roberto não sabe o que fazer. Se voltar sem aquele cachorro, Ana Estela é capaz de matá-lo. Fica minutos parado, sem reação.
⠀⠀⠀⠀⠀“Ei, esse cachorro é seu?”, diz um homem fantasmagórico que surge às suas costas, num átimo, com uma barba enorme e um cobertor quadriculado vermelho sobre o corpo.
⠀⠀⠀⠀⠀Lá está Hans, ao lado daquele homem. Lambendo seus pés enegrecidos pela sujeira. Roberto sente nojo. Aquele cachorro desgraçado não pode mais voltar para casa, vai contaminar a todos, o vírus já está alojado em seu organismo, pensa. Súbito, um líquido quente e amargo lhe chega à boca.
⠀⠀⠀⠀⠀“Porque se não for seu, vou pegar ele pra mim”, diz o homem magro que, agora agachado, abraça Hans que por sua vez lambe seu rosto e balança o rabo sem parar.
⠀⠀⠀⠀⠀Nessa hora, Roberto decide correr, mas congela e já não consegue mover os músculos do corpo. Em seguida, seu coração para num ataque fulminante e ele cai estatelado no chão. Após ver cena, o homem se aproxima, cutuca o corpo de Roberto com o pé descalço e sujo, mas ele não responde. Hans cheira o corpo até chegar à cabeça, onde um líquido esverdeado escorre da boca entreaberta de seu ex-dono. Ele rosna, o homem o acalma com um afago nas orelhas e decide sair dali o quanto antes para não ter problemas com a polícia.
⠀⠀⠀⠀⠀Enquanto caminha lado a lado com o cão, o homem volta a assobiar baixinho a mesma melodia e, logo, outros corpos surgem mais adiante, esperando a coleta do dia seguinte.
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cheirinhos
Rudy

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7 comentários:

  1. Um conto triste, mas muito impactante. Nesses tempos...
    Bem escrito. Gostei.
    Bjs

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    1. Ana!
      Bem impactante.
      Um mês mais que abençoado.
      cheirinhos
      Rudy

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  2. Olá Rudy!
    Nossa, que conto super emocionante e bastante atual
    Bjs

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  3. Olá Rudy!
    Gostei muito do conto, super emocionante e muito bem escrito!!

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    Respostas
    1. Lucia!
      Bom demais.
      Um mês mais que abençoado.
      cheirinhos
      Rudy

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  4. Thanks.
    Um mês mais que abençoado.
    cheirinhos
    Rudy

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Obrigada!!
cheirinhos
Rudy