«Quando
o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva,
perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra
da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de
ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no
jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta,
quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois
humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros
por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz
própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter
solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro,
sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela
garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo
consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas,
quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações
apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre
que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e
remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também
chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que
ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem
ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda
sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em
princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo
do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus
rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do
ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já
com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e
labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar.
Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só
lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior
negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido
corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem
respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se
para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira
dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra.
Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e
foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos
para a cama.»
"É assim que começa Caim, o novo livro de José Saramago.
Naquilo que o autor considera como um simples recontar de uma história
muito antiga (ou não se chamasse Velho Testamento ^_^), sob linguagem
moderna, muita sátira e ironia à mistura … e pouca pontuação (como
habitual!) Saramago acaba por nos tentar mostrar em Caim uma leitura
literal da Biblia (como ela foi lida durante muitos séculos, diga-se de
passagem) e como nesta se revelam muitos defeitos das suas principais
personagens. Deus é uma delas e lendo a Bíb… ermm, digo, Caim, vai-se
notando uma sucessão de episódios – muitos deles rocambolescos e de um
humor notável – em que Deus não é de todo imparcial. Quase dá vontade de
dizer que Ele é ruim como as cobras! Caim, claro, é uma das suas
vítimas – deu cabo do irmão, lembram-se? – mas também o delator de uma
série de caprichos de Deus que, se este fosse actor de telenovela,
fariam qualquer velhota gritar para a televisão – não te cases com ele
filha, que esse é má rês!
No que toca a religião, o humor
pode ser uma coisa do demónio! Umberto Eco disse-o de uma forma bem
explícita (e magistral) no seu eterno romance O Nome da Rosa.
E aqui se prova novamente esse facto. O lançar deste livro por José
Saramago levantou uma incrível polémica, tal como havia acontecido em O
Evangelho segundo Jesus Cristo. A mais ínfima sugestão de que alguns
pressupostos da religião podem ser ter o seu quê de ridículo é
extremamente ofensivo (e reparem que aqui Saramago consegue ir contra os
fundamentos logo de 3 – Católicos, Judeus e Islâmicos) e noutros tempos
já levou à chamada “morte do artista”!
Agora, pelo menos, já se pode
publicar humor sobre religião. Piada com graça ou blasfémia sem perdão,
isso vai depender do leitor. Mas já se pode publicar! E isso, só por si,
é um sinal positivo dos tempos".(Fonte Rir é o melhor remédio).cheirinhos
Rudy
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Adoro ler seus comentários, portanto falem o que pensam sem ofensas e assim que puder, retribuirei a visita e/ou responderei aqui seu comentário.
Obrigada!!
cheirinhos
Rudy