DIVULGAÇÃO CULTURAL #243 - CAMILA PELEGRINI - Meu primeiro conto LGBT+
Olá alegres e felizes!
Uma mini história sobre arte, amor e eternidade (e meu primeiro conto LGBT+!)
Incômoda
Pensei já estar acostumada a seus desafios. Um a um, surgiram como provocações, brincadeiras instigantes, complementos a conversas inesquecíveis.
Nossos contatos jamais foram banais. Mesmo os diálogos em estado de embriaguez, por sono ou álcool, eram capazes de atingir as mais profundas camadas de quem eu era, alcançando pontos dormentes, despertando emoções letárgicas.
Sem dúvidas, uma companhia sempre incômoda.
Aliás, eu disse isso a ela uma vez. Disse-lhe, com todas as letras, que sua presença me incomodava. Receei magoá-la, mas para minha surpresa sua resposta foi um belo sorriso. Grande, transparente, satisfeito.
— Você já deve ter vivido uns nove mil dias. Posso apostar que aqueles de que se lembra são os que te marcaram de alguma forma. Que te incomodaram, te tiraram da zona de conforto — falou, enquanto rodopiava em minha sala de estar, dançando ao som de alguma música presente apenas em sua cabeça. — Para o bem ou para o mal. Os outros são apenas quadradinhos riscados no calendário da sua cozinha.
Lembro-me de ter sorrido com sua resposta.
— Isso quer dizer que você é inesquecível? — brinquei, acendendo um cigarro enquanto a observava se mover. Ela deu de ombros, ainda sorrindo.
— A memória independe de nossa intenção. Esquece-se com facilidade do que você gostaria de recordar, recorda o que você gostaria de esquecer — começou, com seus familiares enigmas e aparente incapacidade de fornecer uma resposta simples e direta. — O tempo vai dizer se você ainda vai se lembrar de mim. Como vai se lembrar de mim.
— Não tem medo de desaparecer em meio a tantos outros milhares de dias?
— Só vou desaparecer se não for incômoda o bastante — respondeu, me provocando com o olhar.
Gargalhei, presa em sua armadilha.
— Pois está gravando sua existência em mim como tinta em tecido.
Seus olhos brilharam naquele instante. Ainda consigo vê-los reluzindo quando fecho os meus.
— Pinte-me.
Encarei-a, sem conseguir disfarçar minha surpresa.
— Já te convidei inúmeras vezes a posar para mim. Você recusou em todas elas.
— Dessa vez é diferente — disse, convicta, atirando-se sobre mim no sofá.
Seus braços finos enlaçaram meu pescoço, os pés com apenas metade das unhas pintadas balançando, agitados, enquanto aproximava seu rosto do meu. Seu hálito de hortelã mesclou-se ao meu de tabaco, resultando naquela mistura que, já há algumas semanas, havia se tornado a minha favorita. E, eu tinha certeza, jamais seria esquecida, não importavam quais fossem as regras capazes de determinarem o que seria mantido em minha memória. Sua voz, sempre rouca, sussurrou em meu ouvido seus termos para a pintura.
E eu, quase dependente de seus desafios, disse sim.
Como sempre acontecia após encontrá-la, fosse por uma hora ou quarenta e oito, tornei-me inquieta. A mente divagando entre nossos momentos, o medo de perdê-la e a maneira adequada de cumprir seus desafios.
A verdade era que eu desejava impressioná-la. Tanto quanto ela conseguia me deslumbrar.
Passei um dia inteiro em meu estúdio, meus olhos varrendo as telas vazias, a mente tentando transportar para alguma daquelas superfícies a extensão e profundidade existentes nela.
Cigarros, café, vinho e água. A necessidade de comer tornou-se apenas borrão entre as necessidades da alma. Havia mais pressa para contemplar o que a inquietava do que para atender eventuais manifestações físicas. Como fazê-la caber em um único quadro? Como retratar uma musa apenas através de lembranças que, eu bem sabia, jamais poderiam fazer jus à realidade?
Ainda que fosse capaz de encontrar a tinta ideal para reproduzir o tom de seus olhos castanhos, pintura nenhuma poderia alcançar com a delicadeza necessária a maneira como brilhavam ao observar a lua; ou a sombra que seus cílios, extensos e volumosos, faziam na pele macia.
Conseguiria desenhar sua boca, de linhas perfeitas e rosadas, mas não a expressão completa que assumia ao sorrir quando eu aceitava um de seus desafios.
Eu, que sempre encontrava em meus pinceis todas as respostas, finalmente reconhecia seu limite.
Ela nunca poderia ser a inspiração de alguém.
Porque ela era a própria arte.
A conclusão enviou arrepios por toda a minha pele, fazendo-me compreender o que eu já sabia.
Experimentando a adrenalina que sempre me tomava ao me posicionar diante de uma nova obra, deixei que a alma ditasse aqueles contornos.
E então eu pintei.
Depositei sobre a tela nossos dias juntas, o incômodo que a fazia inesquecível, sua eternidade presente em cada instante. Pintei-a da maneira como eu a via, exatamente como me havia me desafiado a fazer.
Levei minutos ou horas, não saberia dizer. Finalizei o quadro com a respiração ofegante, o coração disparado como quem acabava de receber visita.
Observei o resultado, sem evitar um sorriso. Ela estava ali. Não suas formas, suas curvas, seu cabelo ou sua pele. Mas sua composição.
Todas as cores em um fluxo de intensa movimentação, em uma dança que dispensava um par. Ela bailava com a vida. Havia brilho, sombras e luz. Desafio. Instigação. Inevitabilidade. Força de atração de quem sabia o que era, o que queria e de quem não hesitava em ocupar seus espaços.
A tela toda estava tomada pela tinta.
Assim como toda a minha vida por ela.
Durante todos os dois anos seguintes.
E por todo o sempre.
Esse conto foi escrito para a Caixa de Assinatura da Inspirium (selo editorial em que atuo, exclusivo para publicação de mulheres. Todos os meses os assinantes recebem nosso lançamento + mimos, incluindo meus contos).
Adoro ler seus comentários, portanto falem o que pensam sem ofensas e assim que puder, retribuirei a visita e/ou responderei aqui seu comentário. Obrigada!! cheirinhos Rudy
Conto lindo.
ResponderExcluirO primeiro de muitos.
OLA
ResponderExcluirnão conhecia essa autora .
Oi, miga
ResponderExcluirSempre quis ler algo da Camila.
Muito bonito e bem escrito.
Gostei.
Bjs
OLá Rudy!
ResponderExcluirNão conhecia a Camila Pelegrini, gostei muito do conto, muito bem escrito e muito interessante!
Olá Rudy!
ResponderExcluirQue lido, gostei muito desse conto, super emocionante
Bjs