Indigo
A cafeteria da Casa Beckett zumbia de estudantes tentando equilibrar bandejas cheias de comida, livros e xícaras de café, manchas das mais diversas cores pintavam o ambiente. O cheiro de bacon, ovos e xarope de bordo preenchia o local amplo. As férias de inverno acabaram, a segunda semana do semestre da primavera havia começado, mas uma leve chuva de neve salpicava flocos brancos do lado de fora das grandes janelas de parede inteira, polvilhando os pinheiros lá fora em um brilho quase azul claro na luz cinza do amanhecer, lembrando-nos de que janeiro ainda não havia terminado.
A mesa onde me sentava no período passado com meu irmão e os amigos dele tinha alguns lugares vagos nesta manhã, mas eu sabia que o lugar em frente ao Royal estava reservado para mim. Coloquei minha bandeja com cereais e leite na mesa, mas antes que eu conseguisse me sentar, meu irmão me lançou seu sorriso sedutor.
— Ei, Pink, pega um pouco de molho para mim?
Ele ainda precisava de mim. Mesmo que fosse para coisas bobas como pegar um pouco de molho, ou dizer quais músicas ele deveria acrescentar à sua playlist para estudar. Royal precisava de mim e era só isso que importava. Assenti e imitei seu sorriso, um sorriso que ele reconhecia tão bem quanto o seu. Nós éramos gêmeos de coração, corpo e mente. Bem, com a exceção de que eu era uma garota e ele, um garoto… que gostava de garotos… ou talvez apenas de um garoto específico, mas eu discordava. Nós nascemos no mesmo dia e, embora eu tivesse nascido primeiro, ele era meu irmão mais velho de todas as maneiras que uma garota poderia precisar. Um protetor. E eu o protegia.
— O verde, não o vermelho — pediu Camden, o namorado do meu irmão, antes que eu estivesse longe demais para escutar.
— Estou bem ciente de que tipo de molho meu irmão exige, muito obrigada. — Ergui uma sobrancelha, tentando manter o sorriso longe do meu rosto, mas falhei, e Camden caiu na gargalhada.
— Se importa de pegar um pouco para mim também, Pink? — falou Corbin, um dos colegas de equipe do meu irmão, com um grande pedaço de seu burrito de café da manhã na boca.
Tentei não ficar muito contente por ele começar a usar meu apelido, Pink, com frequência depois que o semestre da primavera começou. Mas não podia dizer que Royal gostava quando Corbin o chamava de Blue. Era uma coisa nossa. Um jeito de irritar nossos pais e a obsessão deles com todas as coisas azuis. Indigo e Royal tornaram-se Pink e Blue, e o resto é história. O fato de Corbin se sentir íntimo o bastante para me chamar de Pink me fazia sentir melhor do que deveria.
Não havia muito o que dizer de uma garota como eu. Uma garota com cabelos loiro-claros e olhos azuis da cor do mar. Eu era só outra garota que havia sido rejeitada nos corredores do colégio, nos corredores de sua mente. Uma garota com pensamentos que ninguém jamais entenderia. Uma garota que degustava o pôr do sol e ouvia as vozes que viviam dentro de seu pincel. Eu não tinha medo de murmúrios. Eles se derramavam através da tela em gritos altos e sussurros silenciosos. Eles compunham minha alma em cobre e caramelo e combinavam com meu coração azul profundo. A cada baque, mais um quadro. A cada faixa de cor, mais uma característica de quem me tornei.
Meus anos de adolescência não foram fáceis e eu tinha cicatrizes sociais para provar. Não fui a nenhum encontro. Nada de baile para mim, nem sorrisos daquele garoto lindo da minha turma de álgebra. Meu pai me disse uma vez que a solidão era apenas outro capítulo, outra peça na roda dos fracassos e sucessos da vida. Eu escutei e tomei posse das suas palavras. Não havia muito mesmo o que fazer em relação a quem eu era. Eu era uma pitada tímida de amarelo em um dueto com ouro. Meu irmão Royal prosperava no calor das outras pessoas. Enquanto eu ganhei uma bolsa para estudar arte na Universidade de St. Peter, ele ganhou uma bolsa de natação. Ele era um batalhador. Lutava por tudo o que queria mesmo que isso significasse correr o risco de perder tudo. No outono passado, nosso primeiro período, ele conheceu Camden e se apaixonou, depressa e sem reservas. O que o mundo pensava nunca foi importante para ele, nem para mim, mas eu não tinha a tendência de ir atrás das coisas como ele sempre fez. Eu preferia ficar sentada no estúdio de arte da minha família, ou no que tem aqui no campus, e criar uma vida melhor. Uma vida que me fazia sorrir apesar de todo falatório imaturo que girava ao meu redor.
Não há nada de especial para você lá fora.
Expirei, repelindo o pensamento intrometido. Eu sabia que era melhor não escutar. Aquelas vozes maldosas dentro da minha cabeça que eu herdara do meu pai. Nós sofríamos juntos. Mas, por causa dele e do resto da minha família, eu nunca tive que sofrer sozinha com as palavras sombrias e as mãos malignas que tentavam me puxar para as profundezas, para a materialização desagradável da minha própria mente. Meu pai me ensinou a ignorá-las, me ensinou a pintar através da depressão. Por causa dele, e da minha família, eu vivia e respirava e me sentia normal na maioria dos dias.
Ele nos deu a vida.
Fechei os olhos, querendo silenciar as vozes, e me sintonizei com o zumbido caótico do refeitório que subia até o topo do teto de vigas de madeira e metal. Quando abri os olhos de novo, as palavras na minha cabeça haviam evaporado. Fui depressa até o balcão do café da manhã e peguei alguns copinhos de molho verde antes de voltar para a mesa. Os rostos conhecidos de St. Peter me ignoravam conforme eu passava por eles. Eu era um fantasma de macacão, com um Converse manchado de tinta e um sorriso desperdiçado, porque ninguém iria notar.
— Prontinho — falei ao colocar os copinhos na mesa e puxar a minha cadeira.
Corbin estava entretido numa conversa com Dev, outro companheiro de equipe do meu irmão, e não percebeu que eu havia voltado. Esta mesa era um reflexo dos dons do meu irmão. Dons que eu queria poder aproveitar.
Você sempre estará sozinha.
— O que estão dizendo? — perguntou Royal, sua voz estava rouca de preocupação. Continuei olhando para a mesa, bem consciente de todos à nossa volta. Meu irmão, seu namorado Camden e a minha colega de quarto Daphne eram os únicos em St. Peter que sabiam da minha doença e eu queria manter isso assim o máximo de tempo possível. — Pink? — sussurrou ele, se aproximando.
— O mesmo de sempre, não estou muito bem hoje, Blue, nada demais.
— Falou com o Dr. Sand? — perguntou ele, e eu finalmente encontrei seus olhos azuis preocupados. Meus olhos.
— Tenho uma consulta hoje.
— Tente não faltar, está bem? — disse ele, seu tom de voz era suave e carinhoso.
— Não vou faltar.
Eu me tornei bem familiarizada com o Centro de Saúde Comportamental no campus. O Dr. Sand lidava com a minha doença, transtorno esquizoafetivo, ou depressão com traços psicóticos. Nunca gostei do último termo: traços psicóticos. Sempre soou derrotista e assustador. Meu pai e eu ouvíamos coisas, víamos coisas que o mundo não conseguia e, sim, a princípio, eu odiava. No início, fiquei apavorada. Eu acordava suando frio, tinha pesadelos dos quais nunca acordei de verdade. Papai me explicou o que as vozes eram e, quando fiquei mais velha, entendi. Essas divagações persuasivas na minha cabeça eram apenas jogos mentais. Papai me disse para lutar contra elas, disse que eu não poderia deixá-las vencer. Então, eu lutei. Terapia, medicamentos e o amor da minha família. Arte e cor. Era uma prescrição. Uma realidade. A minha vida.
Era difícil estar longe de casa, do meu pai, da minha mãe. Royal ficava por perto, assegurando-se de se sentar comigo em todas as refeições que podia, me importunando com as minhas consultas, e sempre me perguntava sobre as vozes, sabendo que não havia nada que pudesse fazer para silenciá-las. Mas, agora, ele tinha um namorado, amigos, sua equipe de natação… uma vida só dele. Uma vida na qual eu nunca me encaixaria de verdade e, às vezes, eu me perguntava se ele me via como um de seus fracassos. Como teria sido ter uma irmã para sair num encontro duplo com ele, para socializar com ele? Como teria sido para ele não ter que ser sempre o irmão mais velho? Quando nós dois resolvemos nos mudar para Oregon para frequentar a faculdade, prometi a mim mesma que lhe daria o espaço que ele precisasse para se desenvolver, e ele se desenvolveu. Royal desabrochou, o ouro mais brilhante, e esta era uma cor que eu tinha dificuldade de criar nas minhas telas desde a nossa chegada.
Nossa família sofria junta, amava junta e comemorava junta. Royal era a minha metade, mamãe e papai eram o meu núcleo e, enquanto eu observava meu irmão pegar a mão do namorado, sussurrei para mim mesma.
Eu não estou sozinha.
Não sabia se Blue havia me ouvido ou se seu sorriso era apenas seu carinho costumeiro de irmão, mas sorri de volta antes de levar uma colherada de cereal à boca. Na aula, se eu sussurrasse para mim mesma ou se fosse pega contemplando o grande nada, não me importaria. Sempre me ensinaram que eu era especial… que eu via o mundo… que eu pertencia às cores e isso era incrível pra caramba até onde eu sabia. Ser criada por pais artistas e um irmão que me tratava como se eu fosse uma rainha. Eu era sortuda.
— Como ele está? — perguntei ao me jogar na cama do meu irmão, o colchão barato do dormitório rangeu sob meu peso.
Camden não reclamou quando coloquei a cabeça em seu peito.
— Bem.
Ele limpou a garganta. Um tique que percebi que ele tinha sempre que estava nervoso ou desconfortável com alguma coisa. Isso me fez sorrir.
— Bem — repeti e Camden relaxou, sua respiração ficou menos pesada.
A cor do seu tom era laranja e quente quando ele disse:
— Estamos… felizes. Sair do armário, ser capaz de amá-lo na frente de todo mundo… eu fiquei nervoso, principalmente depois do que aconteceu no período passado, mas acho que vai ficar tudo bem.
Ele repousou a mão nas minhas costas e eu me aconcheguei um pouquinho mais, o cheiro familiar do seu sabonete me fez pensar na minha casa por algum motivo. Algumas pessoas podem achar estranho eu ser tão aberta, tão próxima do namorado do meu irmão, mas isso se tornou uma coisa nossa. Camden passou as férias de Natal com a nossa família, a família dele o rejeitou depois que ele começou a namorar abertamente o meu irmão. Camden era um de nós, era nosso do mesmo modo que a cor azul pertencia ao céu. Não o azul verdadeiro, mas o reflexo da cor através de um espectro de luz. Seu espectro se iluminava sob a luz de Royal e todos nós nos deleitávamos nele. Ele era nosso. Fazia parte da família.
— Também acho. Sempre achei.
Ele riu e seu riso ressoou em seu peito.
— Quem me dera ter o seu otimismo.
— Ainda há tempo. Vou te ensinar meus métodos. — Sorri ao rolar para o travesseiro. — Quando é mesmo que o treino acaba? Estou faminta.
Camden levantou o braço e olhou para o relógio em seu pulso, franzindo a testa de preocupação.
— Ele já devia estar aqui.
— Ele disse que se atrasaria, foi por isso que nos pediu para encontrá-lo aqui e não na Beckett. Não se preocupe, tenho certeza de que está tudo bem.
Camden se virou e me encarou. Seus olhos cinza estavam sombreados pelo tufo de cabelo escuro cor de chocolate pairando sobre suas sobrancelhas.
— Será que sempre vou ficar nervoso quando ele chegar tarde do treino agora?
Eu queria mentir, dizer a ele que a visão do meu irmão, seu namorado, todo roxo, iria desaparecer com o tempo. Que aquela briga no período passado seria o último obstáculo que eles iriam encarar, mas a verdade não era algo que eu poderia um dia esconder, nem de mim e nem de todos que eu amava.
— Por um tempo, provavelmente. Digo, ainda está tudo muito recente, Camden. O que aconteceu no período passado foi assustador. E eu queria que não fosse verdade, mas existem pessoas cheias de ódio neste mundo. Mas a equipe de Royal parece aceitá-lo? — Ele assentiu então fiz a pergunta que tive medo de fazer ao meu irmão no último mês: — Como está o Kai?
Kai Carter foi o herói, o mistério, o único garoto que me fez dar uma segunda olhada. Ele era uma pincelada ousada de violeta contra a tela cinza suave de St. Peter.
Camden deu de ombros, seu olhar estava fixo na parede.
— Ele está quieto. Não nos falamos muito desde que o período começou. Parece que nem tenho mais um colega de quarto. Ele nunca está lá.
— Royal me contou que Kai finalmente mandou uma mensagem de texto para ele.
— É. — O sorriso de Camden estava coberto de tristeza. — Só que ele não deu nenhuma explicação para o gelo durante as férias de inverno. Só um rápido “não se preocupe, te vejo na piscina” muito vago.
— Ele é bom em ser vago — resmunguei para mim mesma.
— O que quer dizer com isso? — Camden me encarou diretamente com uma honestidade clara.
— Você percebeu como ele me ignora?
— Ignora?
— Acho que sim. — Cutuquei a mancha seca de tinta amarela no meu moletom, evitando o olhar de Camden. — Sabe, pensando bem, desde o último período, quando nos conhecemos na cafeteria, ele nunca falou diretamente comigo. O que ele fez por você e Royal, defendendo vocês daquele jeito, era de se pensar que ele iria querer me conhecer. Eu sou irmã do melhor amigo dele. — Bati o ombro no dele e forcei um sorriso. — Quero dizer, você me deixa ficar aconchegada em você e você odeia pessoas.
— Eu não odeio pessoas.
Ergui as sobrancelhas e ganhei um sorriso raro.
— Não odeio. Elas só me deixam desconfortável.
— Eu não te deixo desconfortável.
— Deixa, sim.
— É?
Ele assentiu e meu sorriso diminuiu.
— Mas eu gosto de você. Gosto do jeito estranho que você invade o meu espaço. É legal saber que alguém se importa o bastante para romper as minhas barreiras.
Repousei a cabeça em seu ombro.
— Royal não é o único que te ama… espero que saiba disso.
Ele segurou a minha mão. Olhando para o modo com que seus dedos compridos engoliram os meus, ele disse:
— Eu sei. — Ele limpou a garganta mais uma vez. — Há mais no Kai do que aparenta na superfície, mas não acho que alguém se importa o suficiente para procurar. Talvez ele te ignore porque tenha medo de que você encontre.
Royal não havia me contado muita coisa sobre o melhor amigo. Mas eu não era cega. Kai era o cara que chegava e todas as garotas reparavam. Alto e largo, aquela aura violeta, perigoso, com seus olhos escuros que prometiam coisas que não deveriam. Era difícil não o notar. Até mesmo quando ele nadava, dominava a água como queria, mais até do que o meu irmão conseguia. Ele era o tipo de garoto que ficava de pé e lutava pelo amigo; ele explorava sua força, sangrava até secar e a presenteava às outras pessoas. Eu me perguntava se Camden e Royal teriam alguma chance sem a ajuda do Kai no período passado. Talvez Camden estivesse certo e a indiferença dele fosse proposital, mas era tarde demais, eu já havia reparado no jeito com que ele usava sua ousadia da mesma forma que eu segurava um pincel. Era uma rede segura e havia uma fraqueza dentro de mim, aquela voz baixa que me dizia que eu era sozinha, invisível. E eu ansiava pela força que ele tão prontamente dava às outras pessoas.
— Pode ser — concordei, quebrando o silêncio que dominou o ambiente.
O telefone de Camden apitou e seus lábios se abriram num sorriso lento, suas bochechas ficaram com um tom rosado que apenas o meu irmão era capaz de criar.
— O treino foi bom? — perguntei e Camden assentiu, lendo a tela do seu celular.
— Foi, ele se desculpou por estar atrasado, disse para o encontrarmos na Beckett em cinco minutos.
Camden se sentou e digitou uma mensagem.
Não deveria, mas olhei para a tela.
Também estou com saudades. Passe esta noite comigo.
Desviei o olhar depressa, envergonhada por ter bisbilhotado uma frase tão íntima, e triste, me perguntando se algum dia eu teria sorte o bastante para receber um convite desses.